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Diversidade genética do milho e sua conservação nas terras baixas da América do Sul

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    Cientista Visitante
  • 16 de jul. de 2021
  • 9 min de leitura

Autores: Flaviane Malaquias Costa, Natalia Carolina de Almeida Silva, Rafael Vidal, Elizabeth Ann Veasey


O milho (Zea mays L. ssp. mays) pertence à família Poaceae. O gênero Zea é composto por cinco espécies nativas do México e da América Central, as quais incluem o milho e seus parentes silvestres: Z. mays, Z. diploperennis, Z. perennis, Z. luxurians e Z. nicaraguensis (Doebley e Iltis, 1980; Doebley, 1990). O processo de domesticação resultou em uma série de mudanças morfológicas entre o teosinto silvestre (Z. mays spp. parviglumis) e o milho cultivado. Estas alterações morfológicas em relação às características originais são definidas como síndromes da domesticação. O Quadro 1 e a Figura 1 apresentam características contrastantes que apontam traços do processo de domesticação do milho.


Quadro 1. Características morfológicas contrastantes do ancestral teosinto e do milho relacionadas ao processo de domesticação do milho.


Figura 1. Características morfológicas da planta (A) e da espiga (B) do teosinto e do milho. Fonte: Yang et al. (2019), adaptado de Doebley et al. (1990).


A domesticação do milho originou-se no Sudoeste do México, há 9000 anos antes do presente (AP) (Matsuoka et al., 2002; Piperno et al., 2009), e muito cedo alcançou a América do Sul, há pelo menos ~ 7150 anos AP no Ecuador (Pearsall and Piperno, 1990). Diversos estudos mostram que a diversidade genética do milho encontra-se distribuída em diferentes sistemas de cultivo pelas Américas (van Heerwaarden et al., 2011; Bracco et al., 2016; Kistler et al., 2018) e pelo mundo (Mir et al., 2013). As terras baixas da América do Sul correspondem a áreas com altitudes inferiores a 1.500 m e é considerada centro secundário de diversidade genética do milho (Brieger et al., 1958; Paterniani e Goodman, 1977; Silva et al., 2020; Silva et al., 2021). Um estudo recente sugeriu que o milho chegou nas terras baixas da América do Sul em estado parcial de domesticação (Kistler et al., 2018), onde sua diversificação continuou (Figura 2).


Figura 2. Centro de domesticação no México e centro secundário de melhoramento do milho na América do Sul, baseado no modelo de Kistler et al. (2018). Fonte: Costa, 2020.



Por que o milho é importante?


A cultura do milho possui grande importância econômica e sociocultural, sendo um dos cereais mais produzidos mundialmente. A versatilidade de usos permite que a espécie atenda desde as necessidades básicas na alimentação, sendo considerado um dos alimentos de base para a segurança alimentar de muitos países, até a produção de produtos processados em âmbito comercial e industrial. As diversas formas de uso do milho envolvem a produção de farinha, flocos de milho, amido de milho, xarope, etanol, óleo vegetal, plástico, tecido e cervejas. O milho constitui um ingrediente importante da culinária do Brasil por marcar presença no cotidiano da população devido ao preparo e consumo de bolos, broa, pães, tortas, canjicas, cremes, pipocas, milho-verde, polentas, mingais, angú, munguzá, cuscuz e sopas (Costa, 2020; Silva et al., 2020).

A espécie também apresenta potencial para uso medicinal devido à presença de carotenoides denominados Luteína e Zeaxantina, os quais são benéficos à saúde humana e atuam na prevenção de doenças. Pesquisas científicas identificaram elevado teor destes carotenoides e antocianinas em farinhas, grãos e estigmas (cabelo do milho) em variedades locais de milho, em Santa Catarina, no Sul do Brasil (Kuhnen et al., 2009, 2010a,b, 2011, 2012). Estudos científicos como estes agregam valor às variedades locais de milho, que desta forma são indicadas para consumo de alimento funcional.


Como uma pesquisa multidisciplinar ampliou o conhecimento sobre a história evolutiva do milho nas terras baixas da América do Sul?


O conhecimento sobre a diversidade e estrutura genética de populações cultivadas é fundamental para entender a história evolutiva destas populações ao longo do processo de domesticação e dispersão. O milho apresenta grande variabilidade genética e sua dispersão para diferentes regiões permitiu o surgimento de centros de diversificação da espécie em distintos contextos ambientais e socioculturais.

Uma pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo (Brasil), em parceria com a Universidade de la Republica (Uruguai), ampliou o conhecimento sobre a diversidade genética, a conservação e o histórico evolutivo do milho nas terras baixas da América do Sul, por meio de dados de genômica populacional, fenotípicos, etnobotânicos e registros históricos. A pesquisa contou com o apoio da Rede de Pesquisa Colaborativa do Grupo Interdisciplinar de Estudos em Agrobiodiversidade (InterABio) e envolveu a participação de 279 agricultores familiares e integrou 29 instituições em nove microrregiões de dois países - Brasil e Uruguai (Figura 3), o que demonstra a realização de uma pesquisa aplicada e a sua interface direta com a sociedade, o que gerou impacto social.


Figura 3. Regiões de coletas e realização das oficinas, instituições gestoras do projeto e rede de organizações parceiras envolvidas na pesquisa. As cores na base do mapa representam a distribuição dos biomas no Brasil e no Uruguai. Esta imagem foi elaborada por meio do software QGIS (http://qgisbrasil.org). Fonte: Silva et al. (2018).


Neste contexto, a agricultura familiar pode ser fortalecida por meio de estratégias que agreguem valor à produção de variedades locais e crioulas de milho, bem como pela identificação de novos nichos de mercados que incorpore estas variedades nos diferentes circuitos de comercialização. Estas medidas poderão promover a inclusão e a valorização dos agricultores familiares no mercado, além de promover a conservação da agrobiodiversidade (Figura 4). As variedades locais estão intimamente ligadas à agricultura familiar, fortalecem a autonomia do agricultor e contribuem para a construção de sistemas de produção de alimento mais sustentáveis. O milho, também consagrado como o “Cereal das Américas”, representa uma cultura milenar que ainda se estabelece como base da alimentação de muitos povos deste continente.


Figura 4. Agricultoras e agricultores familiares conservam uma ampla diversidade de variedades locais e raças de milho no Brasil e no Uruguai. Fonte: Silva et al. (2021).


As informações geradas pela pesquisa atribuíram respaldo e reconhecimento científico ao germoplasma do milho das terras baixas da América do Sul, bem como trouxeram visibilidade aos sistemas agrícolas manejados por agricultores familiares e tradicionais da região, o que poderá subsidiar políticas públicas e programas de conservação e uso dos recursos genéticos da região.

O desenvolvimento da pesquisa permitiu realizar uma viagem no tempo e no espaço, dentro da qual resgatou-se a história da dispersão do milho, associada às migrações dos povos indígenas ancestrais que habitaram a região no passado (Costa, 2020; Costa et al., submetido). Nesta viagem, alcançou-se o presente, por meio do estudo dos micro-centros de diversidade do milho, que ainda encontram-se sob diversificação em distintos biomas dos dois países (Costa, 2020 e Costa et al., 2020). Estas regiões são consideradas verdadeiras fontes de genes úteis a humanidade e constituem um importante Patrimônio Genético e Cultural. A pesquisa ainda demonstrou a existência da raça amazônica Entrelaçado no Sudoeste da Amazônia, região considerada centro de diversificação da espécie, desde a época pré-conquista até os dias atuais e comprovou que a raça não foi extinta e continua sendo conservada por agricultores tradicionais e povos indígenas que habitam a região, que atribuem nomes locais e indígenas à esta raça, e possuem usos culinários típicos (Costa et al., 2021).

O projeto também permitiu realizar a classificação das raças de milho do Brasil e do Uruguai (Figura 5), onde foram identificadas 29 raças de milho e três complexos raciais, dentro das quais 16 são novas raças, que nunca haviam sido catalogadas pela literatura anteriormente (Silva et al., 2020; Silva et al., 2021). A classificação das raças e suas características morfológicas, distribuição geográfica e usos principais, geraram duas publicações, que consistem na terceira referência do estado da diversidade de raças do Brasil (Silva et al., 2020; Silva et al., 2021), não atualizada desde 1977. As primeiras referências foram propostas pelo Departamento de Genética da ESALQ/USP, no Brasil, por Brieger et al. (1958) e Paterniani e Goodman (1977), e no Uruguai por De María et al. (1979). De modo que tais estudos representam uma importante continuidade ao conhecimento sobre as raças de milho nas terras baixas do Brasil e do Uruguai.


Figura 5. Diversidade entre e dentro de raças de milho das terras baixas da América do Sul, identificada pela pesquisa. Fonte: Silva et al. (2020).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


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Doebley, J.F. (1990) Molecular systematics of Zea (Gramineae).Maydica 35:143-150.

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Costa, F. M.; Silva, Natália Carolina De Almeida; Vidal, Rafael; Clement, Charles Roland; Freitas, Fabio Oliveira; Petroli, César Daniel; Veasey, Elizabeth Ann. (Artigo submetido) Maize dispersal patterns associated with different types of endosperm and migration of indigenous groups in lowland South America. Annals of Botany.

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Kistler, L.M.; Maezumi, S.Y.; de Souza, J.G.; Przelomska, N.A.S.; Costa, F.M.; Smith, O.; Loiselle, H.; Ramos-Madrigal, J.; Wales, N.; Ribeiro, E.; Grimaldo, C.; Prous, A.P.; Gilbert, M.; Thomas P.; de Oliveira, F.F.; Allaby, R.G. (2018) Multi-proxy evidence highlights a complex evolutionary legacy of maize in South America. Science 362:1309-1313.

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1 Comment


Anna Beatriz Queiroz Di Souza
Anna Beatriz Queiroz Di Souza
Oct 19, 2021

Pesquisa interessantíssima!!! Muita diversidade envolvida

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